quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Da visão, olfacto e audição

O bom de andar de comboio (e o mau também) é que uma carruagem é um despertar de todos os sentidos do ser humano. Do tacto e do paladar não irei falar porque esses dois sentidos implicam poder de decisão – nós apenas comemos e tocamos aquilo que queremos – mas na visão, no olfacto e na audição é que a porca torce o rabo!! Quando estes sentidos despertam durante uma viagem de comboio não há muito que uma pessoa possa fazer para os controlar (sem parecer um tolinho com algum tipo de défice de desenvolvimento) e é aí que a verdadeira aventura começa.

- Eu não consigo descrever por palavras alguns dos cheiros que descobri desde esta minha incursão no mundo dos veículos ferroviários. Com 21 anos seria de esperar que já tivesse cheirado tudo mas, ou a minha memória olfactiva foi assolada por uma espécie de peste negra amnésica, ou são algumas das pessoas que andam comigo de comboio que desenvolveram uma peste negra em tudo quanto é poro. Às vezes questiono-me se as carruagens não serão uma espécie de portal com a capacidade de transformar todos os odores corporais, naturais e artificiais em algo malévolo para qualquer ser humano que precise de respirar para sobreviver. Mas logo desisto dessa ideia porque, se fosse assim, também eu cheiraria mal e neste momento não me sinto psicologicamente preparada para sequer considerar essa hipótese. Não sei se é a minha natureza céptica de apenas reparar no que está mal ou se sou simplesmente uma snob que tem a mania que é perfumadamente superior ao resto da humanidade mas uma coisa é certa, nestas minhas viagens de comboio (e já conto com algumas) nunca eu descobri um cheirinho agradável. Não! Quando me cheira a algo é sempre obrigatório baixar a cabeça, colocar o cabelo à frente da cara como se de uma cortina se tratasse e rezar baixinho para que a anónima origem desça na paragem ou apeadeiro mais próximo.

- Faça chuva ou faça sol, seja de dia ou de noite, nunca (MAS NUNCA) pensem em andar de comboio sem óculos de sol. Quando olho para um corredor de gente sentada (e de pé) com os olhinhos bem abertos para o mundo e sem qualquer tipo de protecção não posso deixar de sentir alguma pena (que é a pior coisa que se pode sentir por alguém). As pessoas que se deslocam de comboio num período superior a 30 minutos NUNCA devem andar sem óculos de sol. Aliás, quando se verifica a existência de tal personagem parece que se levanta uma aura conjunta entre nós (os de óculos de sol) que se traduz num entreolhar de segundos em que todos partilhamos uma espécie de superioridade fruto da sabedoria que apenas aqueles que andam nisto há bué – os chamados passageiros velha guarda – conseguem perceber! 

Compreendam:
  • Querem dormir, podem fazê-lo sem ninguém perceber (a boca aberta e a fio de baba que, consequentemente de lá cai, são outra conversa);
  • Querem checar a garina das big boobs ou o homem de barba rija, podem fazê-lo sem que ela ou ele percebam (através da técnica – cabeça em frente e espreitadela pelo canto do olho);
  • Querem analisar a personagem que fala sozinha (ou que tira macacos do nariz, ou que come como se não houvesse amanhã, ou que tem queda de cabelo, ou que é estrábica, etc) podem analisar à vontade sem que a dita cuja se aperceba e vos espete uma naifada no meio das costelas assim que se levantarem para fugir ao pica.

Todo um mundo de possibilidades que apenas está acessível a quem usa óculos de sol. Toda uma experiência deficitária para aqueles que não os usam.

- As coisas que eu ouço no comboio… Não consigo compreender como é que alguém no seu juízo perfeito envereda por determinadas conversas sinuosas e tortuosas (para nós que as temos de ouvir mesmo sem querer) num espaço confinado a 200 mil formiguinhas, cada uma com mais ou menos poderio intelectual e igual gradação de julgamento. De entre o rol de coisas interessantes posso mencionar algumas que me marcaram:
  1. Diz um para o outro que estava do outro lado do corredor: “Ahh e tal comprei grama e meia de erva! (silêncio – e parece que se ouve o outro a mexer os lábios como quem diz “Tás parvo?”) Qual é, meu? Tenho 18 anos. A minha mãe sabe. O meu pai não.”
  2.  Um senhor com uma fotografia na mão virado para duas raparigas (E FORAM ELAS A COMEÇAR A CONVERSA – já nem se pode confiar na nossa faixa etária): “É esta a minha netinha. É linda não é? Tadinha! A minha filha casou-se tarde, sabe? Depois o marido veio com uma conversa que achava que estava a sentir-se atraído por outra pessoa e ela não teve mais nada, pôs-lhe as malas à porta. Ele nem dá dinheiro nem nada. Mas ela também não quer. Nunca está com a menina. Estes casamentos de hoje em dia… (suspiro)”.
  3.  Um casal de namorados à minha frente – ela sela e ele cego – “Oh môre, tax xatiada comigu? Tu que tenx? (conversa de 5 minutos ao telemóvel em modo altifalante – o homem, não o telemóvel) Táx tixte? Táx exquesita! Tu que tenx? (um abraço e um beijo molhado na bochecha mais à mão com direito a descrição sonora)” Querex que vá contigueh comprar o colxão depois de fazeres aquilo da inxcrixão? [com estes dois a coisa ficou tão insuportável que eu fingi que saí e voltei a entrar mais à frente na carruagem].
  4.  Um rapaz para duas amigas “… e eu perguntei quem conhecia a Casa da Quica em Santarém e houve um que respondeu! Diz ele: 75€ o serviço completo! (risinhos histéricos)”. E pergunta uma “O que é que é o serviço completo?” ao que ele responde “Deve ser lap dance e tocar.” (e é neste momento que eu sinto a obrigação de olhar para trás e ver quem é o entendido da matéria e rapidamente percebo que aquele rapaz nunca foi a uma casa de p*tas e que a corcunda que tem nas costas é devida ao peso do enorme armário que carrega com ele desde a descoberta da sexualidade) – eu também nunca fui a uma casa dessas, subentenda-se, mas se “serviço completo” significa “lap dance e tocar” acho que, com esta crise, os homens que procuram esse tipo de serviço deviam simplesmente ir ao Sardinha na quarta-feira à noite onde a coisa se dá por somente 8€ e com direito a uma bebida branca.
Confesso que sou uma apaixonada por vozes. Uma boa voz é meio caminho andado para fazer passar a mensagem e isso é uma vertente da comunicação que eu aprecio pela beleza e simplicidade que tem. Sabem aquelas vozes que mesmo à distância parece que nos sussurram ao ouvido? Grossas, roucas, brutas! Pois, dessas não há nos comboios. Antes houvesse…

Catarina Vilas Boas

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